sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Chiara Castellani

“Não mudaria minha vida por todo o ouro do mundo”. Chiara Castellani é uma mulher feliz, e não o esconde. E são palavras que chegam directamente ao coração, quando você pensa que quem as pronuncia é uma missionária leiga, de 47 anos, na África dos esquecidos. Única médica para 100 mil habitantes em uma área de 5 mil quilómetros quadrados, há dez anos, Chiara é responsável por um pequeno hospital, perdido nas savanas do Congo, abandonado pelos belgas, onde faltam água e luz eléctrica.
Uma médica especial, que faz as cesarianas com a mão esquerda, ajudada por enfermeiros locais, porque, em lugar do braço direito, usa uma prótese, desde que, em Dezembro de 1992, o jipe em que viajava tombou e o braço foi esmagado pelo peso do veículo. Mas Chiara continua sendo uma mulher feliz.
Não sabe onde se encontra o desespero: “Deus achou por bem me salvar, para que eu continue a sonhar junto com Ele e com quem tenha uma só esperança, a de ser amado pelo Pai dos últimos e dos oprimidos”.
Chiara não oculta sua fé, mas não gosta de ostentar sua obstinada confiança em Deus: “O meu não é um abandonar-me passivo – diz – mas um entregar-me”.
Carrega um tau franciscano de madeira, mas repete: “A cruz não é de quem a carrega no pescoço, mas daqueles que morrem nela”.
UMA BATALHADORA IRREDUTÍVEL
Chiara Castellani é uma mulher feliz, embora, aos olhos do mundo, seja fracassada e sua vida tenha enfrentado uma série de derrotas, que fizeram dela uma incurável “perdedora”.
Estudou ginecologia: “gostava da ideia de fazer nascer crianças”, mas se converteu, a contragosto, em cirurgiã de guerra, chamada a amputar membros, extrair balas, recompor cadáveres.
Cheia de ideais e de entusiasmo, Chiara partiu para a Nicarágua, na década de oitenta, junto com o marido: um companheiro de vida e de sonhos, que, alguns anos depois, abandonou-a por causa de outra mulher. Um golpe duríssimo para Chiara, que passou meses de angústia e de incerteza. Sonhava ajudar os outros e se via como um “pássaro com uma asa só”.
Mas ela lembra as palavras do bispo italiano dom Tonino Bello: “Deus criou os anjos com uma asa só, para que voassem abraçados.
Assim aconteceu comigo: desde que fiquei mutilada, encontrei ao meu redor uma série de pessoas que me ajudaram e se tornaram meus anjos”. Como ela, no hospital de Kimbau trabalham seis pessoas deficientes, das quais duas com problemas mentais. Um ex-alcoólatra prescreve as receitas. A cada curva de seu singular itinerário, a vida marcou-a no corpo e no rosto.
Ao longo dos anos, Deus foi-lhe pedindo uma fidelidade que custou caro: Chiara viu seus companheiros de caminho caírem sob os golpes dos contras na Nicarágua; ou serem mortos pelos mercenários congoleses, como o doutor Richard.
Quando foi preso, Chiara tentou se opor “com a única arma desde sempre disponível a nós, mulheres: as lágrimas”. É realmente difícil permanecer fiel a um Deus assim.
Não é de se admirar que ela, em Março de 1985, tenha escrito da Nicarágua: “Eu não creio em Deus. Espero só que Ele exista, mas que não tenha, também ele, zombado de mim!”. Mas Chiara sempre recomeçou sua aventura, apostando em Deus e num grupinho de fidelíssimos amigos e companheiros de batalha. Recomeçou exactamente do ponto que parecia ter-se transformado na sepultura de seus sonhos.
Porque, se há uma coisa à qual Chiara não sabe renunciar, é a sede de futuro, a vontade de construir um mundo melhor em nome do evangelho: “Podem nos tirar tudo, despojar-nos de qualquer direito, mas não nos podem tirar o direito de sonhar. E, na África, vi que os sonhos, até os mais ousados, se realizam”.
ALÇANDO VÔOS, “COM UMA ASA SÓ”
Chiara está realizando um desses sonhos: acender uma lâmpada em Kimbau. Por isso, nos meses passados, enfrentou um “tour de force” pela Itália, encarando uma série de entrevistas e encontros, apesar de que ela – pela própria história e formação – prefere falar através de fatos.
Em qualquer lugar por onde esteja, ela não se esquiva de dar voz aos pobres, à custa de lançar acusações candentes: aponta o dedo contra “o direito à saúde, negado na África pelas lógicas comerciais”; chama de sepulcros caiados “aqueles políticos que recebem a Eucaristia e, com as mesmas mãos, dão seu voto para a guerra”; denuncia as dolorosas cumplicidades da media, que se mantém em silêncio sobre os milhares de horrores perpetrados na África.
O que impressiona é o estilo com que Chiara se move: quando a escutamos atacar o Banco Mundial, percebemos em nossa frente não uma activista de generalidades, e, sim, uma pessoa que aposta sua própria vida, e que não se arrepende de agir assim. Portanto, embora defenda posições radicais, está a anos-luz dos “raivosos contra o sistema”.
Dela, um jornal italiano escreveu: “É uma mulher de fé, que nunca se conformou com uma fé qualquer”.
Teimosa na sua doçura, Chiara está vendo a realização de seus sonhos: no início de 2005, água e energia eléctrica não serão mais apenas uma miragem em Kimbau. Outro sonho está tomando forma na sua diocese, Kenge: uma caminhada de formação para os direitos humanos, para educar as novas gerações do Congo ao protagonismo e à responsabilidade.
Um sonho que Chiara partilha fortemente com o bispo, dom Gaspard Mudiso, nas mãos do qual, no dia 25 de Agosto de 2002, entregou-se, quando se dirigiu a Deus, dizendo: “Prometo viver na pobreza e na obediência, para servir o Teu povo. Ajude-me. Eu pus minha esperança na tua graça, Senhor, ajude-me a identificar minha vida com a de Jesus Cristo”. Um voto de obediência que muito lhe deve ter custado. Chiara está bem longe de ser uma católica pacífica, aquele tipo humano que, muitas vezes, a hierarquia utiliza como mão-de-obra dócil, desprovida de personalidade.
Chiara é de outra matéria: crescida nos anos de contestação, refere-se a si mesma: “Sempre fui fiel à Igreja, mas nunca fui servil”. Quando tem que apostar a própria vida, faz pelo Evangelho e pelos pobres. Sem meio-termo. Há vinte anos, havia jurado eterna fidelidade a um homem que, depois, a traiu. Mas quando se refere a ele, ainda hoje, utiliza palavras de inesperada ternura. Agora optou pela própria entrega à comunidade de Kenge e a seu bispo. Por quê? “Pelo desejo de pertencer, de maneira integral, aos pobres. Quero obedecer a meu bispo, como um protesto aos abusos dos poderosos”.

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